RVq, vol. 17, No. 02, 2025
Universidades ao redor do mundo sempre foram espaços dedicados à formação de cidadãos com pensamento crítico e que, independentemente do regime de governo, lutam contra autocracias e teocracias. Por isso mesmo, em diversos momentos esses ambientes de formação sofrem profunda intimidação, ataques, censura, sempre com o objetivo de deslegitimar e destruir este lugar de pensamento livre e democrático.
Historicamente, sempre que um regime autoritário assume o poder em um país, iniciam-se os ataques à cultura e às instituições de ensino, como as Universidades e seus entes formadores, desde gestores, passando pelos professores e pesquisadores e reverberando nos estudantes. Estes regimes autoritários, para terem apoio popular, precisam calar as vozes que questionam, se manifestam e demonstram sua insatisfação com a tentativa de imposição de uma narrativa única como verdade absoluta. Podemos dizer que o ataque
ao conhecimento, ao pensamento crítico e livre é o modus operandi de todos os regimes autoritários. Stanley1 nos mostra que o ataque às universidades é parte importante do presente como uma estratégia da extrema direita mundial na perspectiva de destruir e desqualificar o saber produzido pelas universidades e consequentemente, pela ciência.
A universidade é o local da busca do conhecimento, da discussão e produção científica. A constante tentativa de desqualificação das universidades em todo o mundo tem o objetivo de aumentar o distanciamento dos cidadãos dos diversos tipos de discussão para que, de alguma forma, não desenvolvam seu próprio senso crítico. Ao se rejeitar o valor da ciência e dos cientistas, acaba-se por eliminar a exigência de um debate civilizado e, este não existindo, resta apenas um único ponto de vista, aquele dominante.1
Na história recente do Brasil as nossas universidades sofreram fortes ataques de regimes autoritários, na tentativa de acabar com nossa autonomia e liberdade acadêmica e levar ao desmonte de nossas Instituições democráticas. Tais atitudes não são inéditas, muito menos diferenciadas. Elas começam com cortes nos diversos financiamentos, tentativas de interferência nas gestões e perseguição de estudantes em seus protestos. As ações mais contemporâneas trazem em seu bojo novas perturbações como veto às iniciativas de diversidade e programas de cotas, expulsão de estudantes “não alinhados” com o projeto do governo, e até proibição de palavras, termos ou ideias em certas áreas do conhecimento.
Nas últimas semanas, o governo Trump determinou a suspensão dos financiamentos à Harvard, Columbia, Princeton, Johns Hopkins e Universidade da Pensilvânia. A suspensão foi justificada por supostas posições antissemitas destas instituições, causadas principalmente por protestos pró-palestina dos estudantes. Além destes cortes, o governo de Trump está investigando mais de 100 instituições no país, em uma espécie de caça às bruxas contemporâneo, o que causou desespero entre estudantes de vários países e até mesmo demissões de funcionários e professores.
Tais ações por parte do atual governo estadunidense não são relativamente novas, no entanto, escalaram a partir de 2020, quando Trump acusou as universidades de não considerar a história dos EUA, promover uma agenda Woke, e que elas estariam ligadas à uma esquerda radical, apoiada por políticos liberais e por grandes corporações com o objetivo de silenciar pensamentos dissidentes.2 Este discurso se repetiu em sua campanha para presidente e é colocado em ação no presente momento.
Trump propôs, e agora realiza, cortes em financiamentos, falas e projetos que, segundo ele, promovem a teoria racial crítica, a ideologia de gênero e/ou outros conteúdos raciais, sexuais e políticos que possam ser considerados não apropriado para crianças e jovens.2
Desacostumadas que estão a este tipo de perseguição e dependentes do orçamento federal em alguma medida, as instituições acabam cedendo. Isso tudo vindo de um país que se jactava de ser a maior democracia do mundo. O caminho é tão tortuoso que a revista Nature realizou uma enquete entre cientistas e mostrou que 75% deles se predispuseram a recomeçar suas carreiras em outros ambientes fora dos Estados Unidos, com sentimentos de tristeza, temor e desesperança.3
A partir destas discussões, outro aspecto da mesma questão esbarra na presença de brasileiros nestes vários centros de pesquisa. Muitos deles encontram-se temerosos com os rumos desta política, com receio de deportação, mesmo estando com vistos legais de estudos, em um país que até pouquíssimo tempo era considerado pela comunidade científica internacional um exemplo de organização, eficiência e inovação científica em várias áreas do conhecimento. Há relatos de brasileiros sobre o monitoramento de redes sociais até trotes telefônicos na perspectiva de sondar mensagens sobre diversidade ou posições políticas contrárias àquelas consideradas oficiais pelo governo.
Com estes receios, não há como ficar tranquilo e produzir uma ciência de qualidade e referenciada. Pesquisadores precisam não só de incentivos financeiros, mas de equilíbrio emocional para que possam render a contento e pensar o conhecimento, ao invés de se preocupar se serão deportados, mesmo estando legalmente amparados.
Como pesquisadores e produtores de ciência, devemos ficar o tempo todo atentos aos ataques que a universidade recebe, recebeu e infelizmente ainda receberá, sempre nos posicionando em defesa dela e da ciência, na perspectiva de que podemos ser uma das últimas barreiras contra um tipo de modus operandi dos intolerantes.
Universidade Federal de Goiás, Instituto de Química, Laboratório de Educação Química e Atividades Lúdicas, 74001970 Goiânia-GO, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-3273-8603
Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Ciências Exatas, Departamento
de Química, 31270-901 Belo Horizonte-MG, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-2609-0281
1. Stanley, J. How Fascism Works: the politics of us and them. Random House: New York, 2018. [Link]
2. Souza, M. A. D.; Oliveira, C. J.; Dos “Marxistas, maníacos e lunáticos”: as retóricas das novas direitas sobre a dominação das esquerdas nas universidades dos Estados Unidos da América. Revista Tomo 2024, 43, e20066. [Link]
3. Leite, B. S. Tecnologias no Ensino de Química: teoria e prática
na formação docente. 1a. ed. Appris: Curitiba, 2015.
4. Witze, A. 75% Of Us Scientists Who Answered Nature Poll Consider Leaving. Nature 2025, 640, 298. [Crossref]
Link- Licença CC-BY
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